Compartilho abaixo o texto que escrevi e foi publicado na página do Múltipla Dança no Facebook, no dia 25 de maio de 2014. Seu título é "TEMPORALIDADE AMPLIFICADA". Nesta pulicação expandida, no blog do Cardumes em Rede, aproveito para trazê-lo antecedido pelas pistas que me atravessaram dos textos de Silmar P e Pedro Coimbra (sobre os espetáculos "Solidão Pública" e "Ninhos", respectivamente).
Maria Carolina Vieira também escreveu sobre essa performance de Michelle Moura em uma escrita chamada "FOLE – REVERBERAÇÕES DE UM CORPO QUE RESPIRA", que introduz e dialoga bem com o texto que segue:
...
"É no convívio de contrários que a coreografia gera existência (...) estado de solitude para atravessar o outro.
Afinal é nesse circuito entre artista e audiência que a arte se faz problematização/questionamento/inquietação,
território de suspensão do mundo conhecido para adentrar no escuro, no desconhecido".
Afinal é nesse circuito entre artista e audiência que a arte se faz problematização/questionamento/inquietação,
território de suspensão do mundo conhecido para adentrar no escuro, no desconhecido".
( Silmar P, em escrito sobre "Solidão Pública" )
"A dança passa a existir além do palco para poder habitar um lugar dentro do corpo
(e em relação a outros corpos) daquele que está a princípio apenas presenciando um ato.
O espectador deixa de ser mera testemunha para se tornar cúmplice".
(e em relação a outros corpos) daquele que está a princípio apenas presenciando um ato.
O espectador deixa de ser mera testemunha para se tornar cúmplice".
( Pedro Coimbra, em escrito sobre "Ninhos")
– Diante de um testemunho vivo, em que momento escolho fechar os olhos?
Ela entra sem cerimônias, sem documentos ou provas do que tem a dizer. Traz a pele marcada pela experiência e expressa no olhar uma disponibilidade sincera. Na programação do Festival Internacional de Dança Contemporânea - Múltipla Dança 2014 - seu nome é Michelle Moura; nos quarenta minutos de apresentação do espetáculo Fole, posso chamá-la Sobrevivência, Rasura, Reminiscência e Contestação.
Neste momento de escrita, procuro alguma fala confortavelmente autoral que possa sintetizar as diversas impressões que ainda pulsam na mente. Porém, muitas vozes também reivindicam lugar e publicação: a maratonista ofegante após sua queda, rastejando os últimos centímetros que a separam da linha de chegada; a interna do manicômio, batendo as costas contra a parede da solitária; a empregada transando com o supervisor no minúsculo almoxarifado da fábrica; a turista européia que conversa com espíritos em sua primeira sessão de ayahuasca; a paciente que se nega a desmaiar mesmo com a boca anestesiada pelos tranquilizantes; a bêbada preparando a garganta e os "amigos de balada" para o vômito que lavará o chão da Casa Noturna; a portadora de deficiência mental que constrói uma linguagem própria e reivindica entendimento; a usuária de crack que procura acompanhar uma canção em língua estrangeira; e, de modo crítico e urgente, a modernidade (enquanto memória de instituições de sequestro, como explicita Foucault) revisitada por esta pesquisa da hiperventilação como estratégia de criação em dança - chamada Fole.
– Ela caminha pela história do corpo e nos oferece testemunho.
Anos atrás, escrevi uma monografia sobre uma instalação/performance nos porões do Hospital Psiquiátrico São Pedro durante a Bienal de Artes do Mercosul de 2001. Chamada Porões da Mente, a obra tratou dos vestígios históricos, ideológicos e materiais da estrutura de poder psiquiátrico naquela arquitetura, no imaginário da cidade e nos corpos dos internos. De certo modo, quando a amplificação fora de tempo da respiração de Michelle traz a "lembrança coletiva" de vozes ao fundo de longos corredores abarrotados; e quando as lâmpadas fluorescentes delimitam um espaço de estudo frio e impessoal, testemunho mais uma corporeidade/fantasma surgir de um lugar impreciso (de tão distante) e, ao mesmo tempo, próximo (de tão pessoal). Me vejo diante de uma memória tecida com minha ajuda, me sinto cúmplice e colaborador ao trazer minha experiência para a cena.
Colar figuras sobre a performance de Michelle é uma escolha possível, sim. Do mesmo modo que é possível acompanhar sua técnica precisa sendo modulada em diversos estados corporais. Nesse jogo de relações possíveis, oscilar entre leituras (por empatia, por semântica, por análise técnica) mostra que o trabalho detalhado do espetáculo cria portas e janelas e, algo ainda mais raro, um lugar para conversar sobre nosso tempo, nossa história, nossas escolhas de atualização e rememoração.
– Ela nos atravessa na escuridão, deixando um palco vazio… ela: respiração; ela: reminiscência de vítimas que não conhecemos mas não deixamos de reconhecer; ela: Michelle; ela: hiperventilação; ela: que ecoa insistente através de algumas arquiteturas de poder sobre o corpo.
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